Relato sobre o curso FBA em Florianópolis, Brasil

por Annemarie Frank

 

Artigo original publicado na revista alemã de Fisioterapia “pt_Zeitschrift für Physiotherapeuten

  Conhecer a própria história, a família, a data de aniversário – para todos nós, isso é natural, e parte fundamental de nossa personalidade. Mas e se formos pensar na história de nosso sistema musculoesquelético? Apesar da teoria da evolução ser um dos ensinamentos mais importantes da biologia, só aprendemos muito pouco durante a nossa graduação sobre o desenvolvimento de músculos, funções e padrões de movimento. Na verdade, nem sabemos direito de onde viemos, e muito menos conhecemos os motivos que geraram a nossa biomecânica. Ao mesmo tempo, nossos consultórios lotam-se com pacientes que apresentam queixas muito provavelmente relacionadas a estilos e hábitos de vida modernos. No mundo inteiro, há uma pandemia de dores lombares, principalmente em países desenvolvidos. Nas ciências da saúde, tenta-se cada vez mais compreender a situação e encontrar soluções para ela. “Aqui está faltando alguma coisa…” pensou Pablo Santurbano há cerca de 7 anos atrás, e iniciou a sua busca pela conexão entre história do desenvolvimento humano e movimento. O fisioterapeuta paulista dedica-se, desde então, ao estudo das bases de nosso comportamento motor e, com isso, também aos conflitos que surgem do contato entre nossa herança biomecânica natural e o estilo de vida moderno. Destas reflexões surgiu o curso “Fisioterapia e Bioantropologia” (FBA), que eu pude visitar em maio, em Florianópolis. O conteúdo estende-se por 5 dias, e boa parte destes é pura teoria. Não é de se admirar – pois o docente precisa recuperar uma quantidade enorme de informações. Ele procura fechar uma grande lacuna de nossa formação atual, apresentando a linha de tempo desde o Big Bang até o presente, passando pela filogênese, ontogênese, embriologia, até o desenvolvimento dos humanos arcaicos. A isso, soma-se a análise biomecânica dos movimentos fundamentais que constituíram o nosso repertório motor durante os aproximadamente 500.000 anos em que fomos caçadores-coletores, e que são responsáveis pelo “plano estrutural” que temos hoje no corpo.   Um experimento jovem da história humana Você sabia que a torção do úmero originou-se dos movimentos ancestrais de arremesso? Que 75 a 84 por cento das pessoas ainda possui um resquício anatômico da bolsa marsupial – através do músculo piramidal? Que nossos ancestrais caminhavam e corriam 9 a 15 quilômetros por dia, mas só necessitavam de 12 a 19 horas por semana para trabalhar? Que tecido fascial já é reconhecível nos primeiros seres pluricelulares, muito antes de tecido muscular e nervoso? Impressionam os muitos fatos novos que se recebe durante o curso, e aos poucos se compreende que a civilização ocidental ainda é um experimento relativamente jovem de nossa história humana. Pablo e seus colegas Bruno Montoro, Paulo Bastos e Jonas Magnabosco – da mesma forma fisioterapeutas com interesse pela antropologia – possuem um estilo didático muito simpático e cativante. As bases teóricas são fundamentadas amplamente em estudos e publicações de autores renomados (dentre eles, Daniel Lieberman, Erich Blechschmidt e Thomas Myers), e são complementadas por gráficos e vídeos de ótima qualidade. O ambiente facilita este aprendizado: o instituto Centro do Ser, uma casa grande com espaços para Ioga, Acupuntura e Pilates, possui uma sala ampla, iluminada, com vista para a Lagoa da Conceição e o mar. Ao lado, a floresta, que abriga pica-paus, lagartos e micos.   O corpo não acompanha a evolução cultural Uma constatação importante forma a base para as reflexões terapêuticas: a evolução cultural (e, com ela, o desenvolvimento das capacidades mentais) progride de modo acelerado há alguns poucos milhares de anos. Nós aprendemos cada vez mais, nos tornamos cada vez mais inteligentes, nossas tecnologias ficam cada vez melhores. O corpo não acompanha essa agilidade – a evolução de nosso sistema musculoesquelético precisa de mais tempo para se estabelecer, e o ambiente, cada vez mais gerado pelo homem, não oferece mais desafios. Vence a cultura do conforto. O resultado é aquilo que muitos autores chamam de “incompatibilidade”. Reconhecê-la e auxiliar em sua diminuição é uma das tarefas básicas do fisioterapeuta. Na parte prática do curso, podemos experimentar os padrões de movimento ancestrais naturais: entre eles, cócoras, caminhada de urso, saltos e braquiação (locomover-se através dos membros superiores, em suspensão). Nós podemos perceber como estes movimentos estão bem armazenados em nossa memória motora, e como conseguimos realizá-los naturalmente assim que nos reaproximamos destes padrões. Aprendemos como podemos facilitar aos pacientes o acesso a eles, e como estimular o paciente a passar mais tempo do seu dia em movimento ou no chão ao invés de sentado na cadeira. Após o exercício, o cansaço. E, ao mesmo tempo, a constatação de que os joelhos estão melhores do que antes, mais maleáveis, e que os ombros se abrem com mais facilidade. Mas, um momento: isso não faz sentido – ficamos de cócoras e andamos em quatro apoios: isso não é prejudicial aos joelhos e estimula a protração dos ombros?
O curso desmistifica muitas convenções estabelecidas da fisioterapia. E muita coisa se esclarece quando iluminada através do ponto de vista das funções naturais do ser humano. Ficamos com gosto de quero mais. Lamentavelmente, a pesquisa em fisioterapia nesta área ainda está recém iniciando. Resta-nos virar a literatura nos campos básicos da antropologia, paleontologia, arqueologia e biologia para descobrir mais explicações para os conflitos entre a cultura moderna e nossa natureza. Durante e após o curso, criam-se discussões muito interessantes sobre o tema, também nas redes sociais. Os participantes do grupo, que se constitui de pessoas vindas de várias regiões brasileiras, relacionam-se bem e continuam o estímulo a experimentar o que foi aprendido também no dia-a-dia. De fato, pode-se aplicar muito do conteúdo já de imediato, e meus pacientes levam para casa já na semana seguinte muitas tarefas novas. Posso constatar no dia-a-dia clínico que padrões de movimento ancestrais são um modo muito simples, fácil, mas também eficiente de recuperar certas funções. Um paciente com diagnóstico de capsulite adesiva, por exemplo, conseguiu melhorar sua amplitude de abdução de modo significativo simplesmente pelo exercício de rastejar. Apesar disto, é válida a preocupação por uma reflexão individual e uma avaliação criteriosa. Qual paciente irá necessitar de quais componentes, de quais padrões? E muitos movimentos precisam ser desenvolvidos de forma lenta e cuidadosa, pois a sociedade de conforto já deixou suas marcas de forma expressiva. Neste sentido: vamos de volta à natureza, e a pé – mas a passos pequenos, primeiramente…
  Dica de leitura Lieberman DE. Story of the human body: evolution, health and disease. 2013.

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