Você teria parâmetro para distinguir quanto um alimento seria doce se nunca tivesse experimentado algo salgado? Quanto um ambiente seria claro se nunca tivesse tido contato com um ambiente escuro? Ou quanto um som seria grave se nunca tivesse escutado um som agudo?
Para nosso cérebro essa capacidade de diferenciar sensações só é possível por meio de experimentações. A vivência permite com que se adquira uma memória sensorial e se possa fazer comparações, distinguindo as sensações. Mas o que isso tem a ver com a corrida? Essa relação tem a ver com a sensação de CONFORTO. Vamos entender melhor essa visão.
Se olharmos para a história da nossa espécie, o uso de calçado esteve presente por um pequeno período, apesar de ter sido fundamental para a conquista de diferentes territórios, pois com uma proteção fica mais fácil de se locomover em ambientes de temperaturas extremas (frio, calor), em solos de superfície cortante ou de difícil acesso.
Esta mínima proteção já era um sinal para o cérebro dos nossos ancestrais em direção a uma maior sensação de conforto, principalmente se comparada, por exemplo, a andar descalço sobre espinhos ou sobre a neve. A tecnologia normalmente nos permite “burlar” o processo tradicional de seleção natural. A criação da pedra lascada, por exemplo, possibilitou com que cortássemos carne, ao invés esperarmos milhares de gerações de humanos até que nossa espécie adaptasse garras afiadas. Podemos dizer que o calçado seria uma extensão da nossa biologia, ao invés de adaptarmos “super-cascos” na sola dos pés.
Pois bem, até o ponto no qual o calçado não limitava muito os movimentos dos pés, pode-se dizer que a nossa biologia estaria ainda compatível de certo modo com o desenvolvimento da tecnologia, uma vez que esta não se sobrepunha às funções neuromusculoesqueléticas responsáveis por movimento econômico e saudável durante a caminhada e a corrida. Porém a medida que os calçados foram se desenvolvendo e se sobrepondo funcionalmente aos componentes naturais dos pés, as disfunções foram aparecendo ao longo da história.
Todo animal, naturalmente, apresenta uma predileção pelo conforto, porém no caso de humanos podemos dar vazão a toda essa predileção, gerando grandes incompatibilidades evolucionárias. Uma das maiores reflexões que nós da Corrida Ancestral sugerimos é que o excesso de conforto, proteção e tecnologia dos calçados de corrida podem ser responsáveis por uma diminuição das capacidades fisiológicas ligadas ao movimento, que foram desenvolvidas por milhões de anos a fim de que pudéssemos ser bons corredores de longas distâncias.
Se você nasce em um contexto cultural como o nosso, no qual normalmente o primeiro presente que uma criança recebe é um sapatinho, e depois passa o resto da vida protegendo os pés com calçados, dificilmente você vai se sentir confortável correndo descalço ou com um calçado que só tenha função de proteção da pele.
No entanto, não sugerimos que você arranque seu tênis e saia correndo! Nossa proposta é que você corra o tempo todo se sentindo confortável, porque isso também vai modular suas respostas cinesiológicas. Caso se sinta desconfortável durante um gesto motor natural, como a corrida, isso pode te levar a ter compensações neuromotoras que não são muito interessantes quando se trata de economia energética e de prevenção de lesões.
Talvez você se surpreenda, mas acreditamos que você deva continuar correndo com o tênis que preferir e que se sente confortável. Queremos, no entanto, propor uma reflexão sobre o fato de o uso de alguns tipos de calçados podem acabar prejudicando a motricidade natural da corrida. Independente de como o corredor quiser correr, deveríamos refletir se devemos depositar no calçado a responsabilidade em relação a segurança e a proteção contra o impacto. Além disso, uma vez que o uso de calçado não apresenta nenhuma evidência científica real de prevenção de lesão, talvez valorizar a qualidade do gesto da corrida, volume, intensidade e variação de movimentação pode ser um caminho mais plausível a ser seguido.
Nós (Bruno e Vitor) temos mais conforto ao correr descalços ou de sandália, porém isso foi um processo de reeducação e de reorganização dos nossos padrões centrais de movimento relacionados a corrida, que nos permite ter uma sensação de conforto com esse tipo de calçado ou sem o uso dele.
Caso você queira conhecer mais sobre como correr de modo mais confortável (sem ou com o calçado que você quiser) e, principalmente, de forma segura, será um prazer facilitar o conhecimento e a experiência que temos adquirido ao longo de nossos atendimentos e de vivência própria em um dos nossos cursos.
REFERÊNCIAS
NIGG, B. M., et al. Running shoes and running injuries: mythbusting and a proposal for two new paradigms: ‘preferred movement path’ and ‘comfort filter’. J Sports Med 2015.
ROBBINS, S., WAKEDA E. Hazard of deceptive advertising of athletic footwear. J. Sports Med. 1997.
ZIPFEL, B., BERGER, L. R. Shod versus unshod: The emergence of forefoot pathology in modern humans? The Foot. 2007.
Trinkaus, E. Anatomical evidence for the antiquity of human footwear use. Journal of Archaeological Science 32, 2005.
Trinkaus, E., Shang, H., Anatomical evidence for the antiquity of human footwear: Tianyuan and Sunghir, J. Archaeol. Sci. 2008.
VAN GENT, et al. Incidence and determinants of lower extremity runningin juries in long distance runners: a systematic review. Bj Sport Med, 2012.
LOPES, A. D., et al. What are the Main Running-Related Musculoskeletal Injuries? A Systematic Review. Sports Med 2012.
SARAGIOTTO, B. T., et al. What are the Main Risk Factors for Running-Related Injuries? Sports Med, 2014.
TAUNTON, J. E. A retrospective case-control analysis of 2002 running injuries. Br J Sports Med, 2002.
ALTMAN, A. R., DAVIS, I. S. Barefoot Running: Biomechanics and Implications for Running Injuries. Sports Medicine, 2012.
MEARDON, S., KLUSENDORF, A., KERNOZEK, T. Influence of injury on dynamic postural control in runners. The International Journal of Sports Physical Therapy, 2016.
JUNIOR, L. C. H., et al. Lower limb alignment characteristics are not associated with running injuries in runners: Prospective cohort study. European Journal of Sport Science, 2016.
MANN, R., MALISOUX, L., et al. Plantar pressure measurement and running-related injury: A systematic review of methods na possible associations. Gait and Posture, 2016.
LUN, V., et al. Relation between running injury and static lower limb alignment in recreational runners. Bj Spost Med, 2016.
MURPHY, K., CURRY, E. J., MATZKIN, E. G. Barefoot Running: Does It Prevent Injuries? Sports Med, 2013.
Eu nao corro. Caminho com sapatenis usaflex confortável. Mas tenho duvida sobre o que usar jogando volei por exemplo. Tentei na areia que me pareceu delicioso. Estava contaminada de modo que tive de voltar pra quadra comum. Alguma sugestao?