Por Lucélia Andrade Dias Cavalcante e Claudiane Nascimento
O excesso de conforto proporcionado pelo mundo moderno pode ser prejudicial à saúde.
Olhe ao redor. Veja os carros, computadores, elevadores, processadores… E observe como vivemos em um mundo rodeado de recursos tecnológicos e acessórios “facilitadores” do nosso cotidiano. Todo esse arsenal de modernidade pode parecer uma enorme conquista do homem ao longo dos séculos, mas também nos fornece uma perigosa comodidade, muito incompatível com a nossa biologia natural. Deixamos de suar, de nos esforçar, até de andar a pé em pequenos trajetos. Quando decidimos caminhar ou correr, e abrir mão dos motores, fazemos isso acompanhados de aparelhos eletrônicos, como celulares, tablets, som etc., deixando de lado a integração de funções corporais essenciais, ao parar de assimilar todos os estímulos somatossensoriais presentes durante um simples trajeto.
A verdade é que a cultura contemporânea nos oferece muito conforto e esse excesso de conforto está gerando disfunções corporais, as mais comuns são tensões musculares, degeneração articular precoce e dores musculoesqueléticas, que atinge as pessoas cada vez mais cedo. Além disso essa cultura de disfunção corporal leva a doenças cardiovasculares que é hoje a maior causa de morte no mundo.
Precisamos de uma Fisioterapia, que além de recuperar funções, esteja também voltada para resgatar o contato do ser humano com o meio ambiente físico e mecânico, ou seja, que ofereça estímulos somatossensoriais para sua recuperação funcional, mas que também o harmonize com o que é ser um ser humano, principalmente pelo ponto de vista psicomotor.
Com o objetivo de preparar os profissionais para tal reintegração corporal humana, surge o curso de FBA (funcionalidade, biologia evolutiva e antropologia) que se propõe a sanar algumas lacunas no ensino da Área de Saúde. Criada pelo fisioterapeuta brasileiro Pablo Santurbano por volta de 2011. O curso de FBA não é um método, mas, sim, um ponto de vista, que propõe um tratamento fisioterapêutico que recupere não só as funções atuais do indivíduo, mas que considere os movimentos humanos mais primitivos. Em outras palavras, a proposta é entender o contexto evolutivo dos movimentos corporais e devolver a funcionalidade com base no comportamento de nossos ancestrais e no desenvolvimento neuropsicomotor do ser humano.
Segundo James O’Keefe e colaboradores num artigo científico publicado em 2011 chamado, numa tradução livre, “Exercite-se como um caçador-coletor: prescrição para aptidão física orgânica”, o ideal seria nos exercitarmos de forma generalista como fazem os caçadores-coletores. Essas pessoas, vivas ainda hoje, se vêm obrigadas a caminhar longuíssimas distâncias (ao menos para o nosso parâmetro), cerca de 5 a 16 km/dia, em busca de recursos, podendo gerar um gasto energético de 800 a 1200 Kcal diárias destinados apenas à atividade física, cinco vezes mais que o ser humano urbanizado contemporâneo. O ponto é que, com este comportamento físico, não é à toa que são esguios e a obesidade, as doenças cardiovasculares e as musculoesqueléticas quase não existem nessas populações. Isso ocorre pelo fato dessas pessoas usarem o corpo de forma integral e generalista, pois além de caminharem, eles correm, carregam pesos, escalam, se acocoram e etc., não repetindo os mesmos movimentos e nem sobrecarregando uma ou outra articulação, o que reduziria o risco de lesão.
Além disso, as pessoas que vivem da caça e da coleta realizam essas atividades físicas quase sem calçados ou descalços, em terrenos naturais, irregulares, porém muito mais macios que o piso da cidade. Assim, não só Santurbano, mas diversos autores internacionais como, o chefe da Biologia evolutiva de Harvard, Daniel Lieberman, sugerem que usemos tênis com o menor amortecimento possível (calçados minimalistas) a fim de que possamos desenvolver a flexibilidade, força e prontidão da musculatura do pé e, com isso, diminua-se o risco de lesões.
Você pode estar se perguntando se os exercícios tradicionais não bastam para melhorar todos esses aspectos? Bem, o fato é que atualmente os exercícios que realizamos são “industrializados”, pois são repetitivos, estereotipados, com cargas e padrões de movimento extremamente precisos, calçados com amortecimentos de última geração, em locais fechados etc. E todos esses fatores, por mais que pareçam de vanguarda ou científicos, não respeitam as mesmas características essenciais para as quais o nosso corpo evoluiu durante milhões de anos para se movimentar. Trocando em miúdos, tudo isso é bastante diferente daquilo que nossos ancestrais experimentavam há mil, cem mil ou 1 milhão de anos e, consequentemente, temos um custo por causa disso, que pode ser uma série de doenças musculoesqueléticas relacionadas aos acessórios e ambiente mecânico inapropriados para o nosso corpo.
Deveríamos nos preocupar em realizar um padrão de movimento saudável do mesmo modo que nos preocupamos em ingerir nutrientes saudáveis. Como diz Pablo Santurbano, “a qualidade dos nutrientes e das cargas que impomos aos nossos corpos são preocupações que deveríamos ter para ter um corpo saudável tanto metabolicamente como muscularmente”. Baseado no pensamento evolutivo do FBA, o paciente pode sair do consultório e receber estímulos somatossensoriais durante o tratamento utilizando exercícios naturais. Deste modo, pode-se realizar uma recuperação funcional de acordo com movimentos naturais adquiridos durante a nossa infância e que foram suprimidos pelo conforto tecnológico oferecido pelo mundo contemporâneo urbanizado. Tais movimentos irão trabalhar de forma global vários grupos musculares resgatando posturas e habilidades perdidas ao longo da vida, como, por exemplo: o rolar, o arrastar, o engatinhar, o sentar no chão, a postura de cócoras, saltar, o apoio unipodal, rolamentos e arremessos. Estes movimentos básicos são também pré-requisitos essenciais para que se tenha movimentos mais complexos saudáveis, como, por exemplo, uma marcha eficiente ou um bom padrão de movimento na corrida.
A cócoras, por exemplo, é considerada uma postura de transição, ela permite os pés ficarem em plataforma auxiliando a recuperar a função natural dos pés; no joelho ela oferece uma diminuição da sobrecarga na patela; no quadril, uma melhor congruência da articulação coxofemoral; na pelve prepara o assoalho pélvico como retentor eficiente das vísceras (algo extremamente necessário para a postura de pé); na lombar alivia a hiperlordose, entre outras. Além de todos os benefícios musculoesqueléticos, sabe-se que esta postura pode até mesmo auxiliar no tratamento de constipações, além de servir para preparar a mulher para um parto natural.
Vale salientar que todos esses movimentos podem ser realizados tanto no consultório fisioterapêutico ou como em um ambiente ao ar livre, como parques, praias e campos, atingindo todas as faixas etárias e inúmeras condições musculoesqueléticas, embora sempre respeitando o limiar de cada indivíduo e sem regras absolutas para a sua execução.
Em nossa vivência prática realizamos esses exercícios naturais com pacientes portadores de condições crônicas (osteoartrose, artrite, osteoporose, discopatia degenerativa) e corredores vítimas de lesões traumáticas e cirurgias (como a “canelite” ou síndrome do estresse medial tibial, síndrome do trato iliotibial, osteossíntese no fêmur após ressecção de tumor ósseo, fascite plantar e luxações nas articulações do quadril e ombro). Todos nossos pacientes evoluem de forma rápida e satisfatória, relatando que voltaram às suas atividades de vida diária e esportivas com melhor execução de suas funções como andar, sentar, correr e etc. como pode ser visto nas imagens.

Diante dessa nossa experiência prática e associado ao pensamento de movimentação evolucionária do FBA, concluímos que uma recuperação neuromotora com exercícios naturais e num ambiente externo nos deu a chance de provar que a cultura urbana contemporânea nos condena a termos doenças musculoesqueléticas e cardiovasculares com maior precocidade e frequência. Nas palavras de Lieberman, evoluímos para sermos atletas naturais e não seres sedentários. Não só esse raciocínio, mas evidências substanciais endossam que é nosso estilo de vida que cria nossos principais problemas de saúde, deste modo, literalmente, ficar sentado está nos matando.
Lucélia A. Dias Cavalcante é fisioterapeuta, graduada pela UFPE em 2001, pós-graduada em Fisioterapia desportiva pela UGF, com formação nos seguintes cursos-livres: método Cyriax, SGA, Isostretching, Escola da Coluna, método Busquet, FBA básico e somatovisceral, corrida ancestral, Sohier, mobilização neural e estabilização segmentar.
Claudiane Maria do Nascimento é fisioterapeuta graduada Faculdade Integrada do Recife em 2010, pós-graduada em Fisioterapia em UTI; com formação em cursos-livres: Método Busquet; FBA e Corrida Ancestral.
Este texto foi originalmente publicado na revista “Observatório Feminino” nº3, em 2016.
Orgulhosa e feliz por colaborar com esse clã engrandecendo nossa fisioterapia . ????????????????????????
Nós que agradecemos, Lucélia! Ótimo texto!
Acho muito importante as informações divulgadas
Também achamos! Compartilhe com seus colegas se julgar pertinente! Agradecemos o incentivo, João!
Adorei o artigo, pois o mesmo enfatiza a importância da natureza aliada a exercícios simples e eficazes , onde todos podem ter acesso , obtendo resultados satisfatórios tanto do ponto de vista físico como emocional. PARABÉNS!!!!