A Hipótese da Incompatibilidade foi proposta por diversos autores que estudam a evolução humana sob diferentes áreas de estudo, como a antropologia, a psicologia e a medicina. Segundo essa hipótese, muitos dos problemas que hoje nos afligem como indivíduos e sociedade são consequências de uma grande incompatibilidade entre nosso estilo de vida atual (sedentário, urbanizado, especifista, com baixa qualidade de sono e comidas industrializadas) e o nosso corpo (que se adaptou a um estilo de vida mais nômade, generalista, com boas doses de descanso e movimentação e uma alimentação completamente diferente).
Daniel Lieberman, no livro “A História do Corpo Humano”, pontua 3 fatores principais para desencadear incompatibilidades entre uma espécie e seu ambiente/estilo de vida: estímulos demais, estímulos de menos e estímulos novos. Fica fácil entender a relação com estímulos excessivos quando falamos em dores e lesões. Afinal, na grande maioria das vezes atribuímos o surgimento desses problemas a este fator. “Sobrecargas”, “desgastes”, “movimentos repetitivos” e “uso exagerado” são termos comumente utilizados nesses casos e estabelecem uma relação de “causa/efeito” bastante simples de entender, mas que nem sempre correspondem à realidade. Embora os estímulos excessivos, como os movimentos repetitivos de um trabalho de escritório ou a postura mantida por muito tempo (qualquer que seja, afinal não existe postura correta), de fato se correlacionem com sobrecargas e possam potencialmente acarretar em um processo doloroso, a falta de estímulos pode ser tão potencialmente lesiva quanto.
Dificilmente se atribui dor e lesão ao fato de as pessoas passarem muito tempo paradas, a uma falta de movimentos mais amplos e variados, a um estilo de vida que tenta compensar diversas horas sentado (trabalhando/descansando) através de 40 minutos a 1 hora de atividade física (muitas vezes também sentados em máquinas). Como mencionado, o estilo de vida atual de boa parte da população mundial parece ser um dos maiores responsáveis (se não o maior) por nosso processo de sedentarismo e seu consequente desequilíbrio de estímulos e isso acontece por diversos meios. A capacidade de modificar o ambiente ao redor para que tenhamos menos trabalho (físico) e mais conforto e comodidade para executar tarefas diárias, apesar de se basear em instintos e comportamentos naturais e ancestrais de economia de energia e de solucionar diversos dos problemas que existiam em tempos remotos da nossa espécie, hoje nos direciona a incompatibilidades cada vez maiores. Quando o ambiente é modificado para fornecer tudo o que precisamos ao alcance das mãos e o movimento acontece por meio da interação entre ambiente e indivíduo, o “mover-se” natural se torna mínimo e um corpo adaptado para uma movimentação generalista sofre. A falta de estímulos é tão (ou mais) importante quanto o excesso deles. Afinal, excesso de estímulos pode ser “compensado” com estímulos opostos, a falta deles não.
E os estímulos novos? Em termos de espécie humana, vivemos inventando e criando tecnologias que mudam completamente nosso ambiente e a forma que interagimos com eles e isso se renova em frações de tempo extremamente curtas, basta observar as inovações e modificações do ambiente e do nosso estilo de vida nas últimas décadas. Por si só, a maioria das nossas tecnologias atuais nos coloca em uma posição de estímulos novos frequentes. Celulares, computadores e o trabalho repetitivo sentado são inventos da modernidade para os quais nossos corpos não foram adaptados (e, provavelmente, nunca serão) e que modificam não apenas o nosso “mover-se”, mas a forma de pensar, agir, interagir e socializar.
Em termos de indivíduos, é comum encontrar pessoas que decidiram trocar o estilo de vida sedentário por uma vida mais ativa e simplesmente decidem correr, nadar, malhar ou fazer crossfit. Apesar de benéficas e pautadas na busca por resgatar capacidades mais condizentes com as necessidades do nosso corpo, todas essas atividades são estímulos muito novos para um indivíduo sedentário e que requerem uma fase de adaptação bem controlada e consciente. Nestes casos, de fato, não é só sair correndo ou malhando e dar o melhor de si, novos estímulos podem gerar boas ou más adaptações e tudo depende de cuidado e prudência. Afinal, quando se negligencia o corpo e os movimentos por anos, não dá para “do nada” querer muito dele!
Dito tudo isso, é importante lembrar que incompatibilidades não ocorrem apenas com o ser humano e são um processo comum na natureza. Crenças na “perfeição” da natureza não condizem com a Teoria Sintética da Evolução e seus processos de seleção, pois é justamente a “imperfeição” e a capacidade de modificação através do tempo dos seres vivos que permite a adaptação ao ambiente e a permanência da vida ainda que as condições mudem. Somos exemplos dessa capacidade de adaptação da natureza e, ainda que sob incompatibilidades e suas repercussões negativas (e positivas), prosperamos como sociedade e espécie. A hipótese da incompatibilidade e suas relevantes considerações apenas buscam equilibrar nossas necessidades básicas ao estilo de vida moderno, para que tenhamos ainda mais avanços sociais, principalmente por meio de uma melhor funcionalidade e qualidade de vida. No fim das contas, estímulos podem ser bons ou ruins, moderação e prudência são peças-chave para um corpo saudável e entender e lidar de forma mais equilibrada com nosso corpo é um processo complexo, mas possível.
Referências do texto
Lieberman, Daniel E. A história do corpo humano: evolução, saúde e doença; 1. ed. – Rio de Janeiro: Zahar, 2015.
Darwin, Charles. A origem das espécies; 1. ed. 1. reimpressão – São Paulo : Edipro, 2018.
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