Imagine uma situação: uma criança nasce saudável, sem limitações visuais, mas mesmo assim os pais compram óculos infantis especiais, enchem a casa de objetos coloridos, de várias formas e tamanhos, na tentativa de ensinar a criança a enxergar. Várias estratégias pedagógicas são empregadas repetidamente a fim de desenvolver a capacidade da criança em interpretar o ambiente visual.
Meio bizarro, não é?
É senso comum que não é necessário ensinar as crianças a enxergarem, já que os olhos e a capacidade de enxergar se desenvolvem naturalmente em crianças sem necessidades especiais. Contudo nossa sociedade faz exatamente isso com um sistema fisiológico e um canal sensorial humano. (Se você é um seguidor assíduo da FBA, já deve imaginar sobre qual capacidade humana vamos falar…)
Imagine no entanto se esses pais do começo do texto fizessem o oposto… A criança nasce saudável, com os olhos e a capacidade de enxergar perfeitos, mas eles colocam um tampão em frente aos olhos da criança e nunca os tiram, até a vida adulta. Assim, aos 20 anos de idade, esse tampão é retirado… Será que este adulto, que se desenvolveu sem poder ver nada, saberia interpretar aquilo que iria enxergar a partir desse momento?
Nossa reflexão será sobre a nossa capacidade de movimentação. Seria necessário ensinar o ser humano a se mexer?
Se você tem contato com crianças, já deve ter percebido o quanto elas são autônomas em relação ao próprio corpo, explorando o ambiente de todas as formas imagináveis. Basicamente todo o desenvolvimento motor aconteceria mesmo se a criança não fosse estimulada, caso o ambiente fosse propício para isso. O papel de estimular o movimento não deveria se restringir somente aos pais ou aos profissionais do movimento, mas derivar das interações naturais com o ambiente.
Entretanto, o ambiente contemporâneo é completamente diferente do ambiente que nossos ancestrais evoluíram, a savana africana. As características desse ambiente semiárido foram as principais fontes de estímulo para o desenvolvimento do movimento humano. Nossos ancestrais eram caçadores-coletores e nômades, o que indica que eles se movimentavam muito e de diferentes modos em busca de comida. [1]
O terreno aberto e a necessidade de comida e água influenciaram a adaptação da capacidade de realizar longos deslocamentos, assim como o ato de cavar (em busca de raízes ou uma fonte profunda de água); a relva alta estimulou a ficar em pé (para enxergar à distância) ou se arrastar (para se esconder de algum predador); as árvores estimularam a escalada para proteção ou para colher frutas; a ausência de uma cama fofinha, estimulou o repouso no chão, e o chão por ser desconfortável estimula diversos padrões de movimento para repouso. Além disso,a criança que nasce e cresce nesse ambiente, aprende a se movimentar vendo os adultos realizando suas tarefas diárias. [2]
Sim, existe uma certa influência dos adultos em ajudar a criança a aprender a se movimentar (rolar, engatinhar, correr, escalar, arremessar etc.), mas é uma influência indireta, ou seja, a criança aprende observando os adultos se locomover no ambiente ou já interagindo diretamente com eles nas atividades diárias, ou seja, não existe um protocolo de ensino do movimento. Em pedagogia evolucionária, isso é chamado de aprendizagem primária. Movimentações mais específicas voltadas para tarefas mais aculturadas (como fazer ferramentas, dançar, lutar etc.) eram ensinadas através de brincadeiras, da observação e da própria prática, ou seja, ao invés da criança ser ensinada em uma escola, isolada dos adultos, ela aprende junto com eles. Isso é chamado de aprendizagem secundária. [2, 3]
O ser humano tem três canais de aprendizado: visual, auditivo e cinestésico. O aprendizado somatocinestésico (do corpo e do movimento) é composto de três fases: interação com o ambiente, a experiência, e a capacidade de antecipação motora. É a chamada inteligência somatocinestésica, ou a capacidade de utilizar e perceber o corpo no ambiente. [4]
Respondendo, então, à pergunta-título desse texto:
- NÃO, em teoria não precisamos ensinar movimento para o ser humano, mas isso em um ambiente que estimule corporalmente o indivíduo; e, por isso, a resposta também é
- SIM, pois vivemos com um “tampão” no sistema de movimento que não nos permite desenvolver a capacidade de interpretar e executar movimento em sua plenitude.
Fica claro, que a movimentação do ser humano é uma consequência natural da interação do mesmo com o ambiente no qual ele evoluiu e com outros de sua espécie, por meio de uma inteligência primária biológica e intuitiva. A cultura, que é grupo-específica, por sua vez, gera a necessidade de movimentos mais específicos (como fazer ferramentas, escrever ou mexer no celular ou comer de garfo e faca), mas não é uma necessidade inerente ao ser humano.
O estilo de vida dos nossos ancestrais caçadores-coletores era totalmente baseado na inteligência somatocinestésica. Em contrapartida, se o ambiente e o movimento de outros da mesma espécie influenciam o desenvolvimento motor das crianças, o que acontece com a inteligência somatocinestésica de crianças que são criadas em ambientes que inibem quase todas as possibilidades de movimento?
Nossa sociedade suprimiu o aprendizado cinestésico e enfatizou a visão e audição. Na escola, crianças são ensinadas enquanto ficam sentadas em cadeiras por 8 horas, olhando para um quadro negro, escutando o professor, além de estarem separadas do ambiente dos adultos. O único momento em que o movimento é permitido é no intervalo de 15 minutos do recreio e nas aulas de educação física, que acontecem duas vezes na semana, por 45 minutos, o que é totalmente oposto a nossa biologia.
Que fique claro, a crítica nesse texto não é contra a escola em si, mas sim sobre o modelo de ensino, principalmente de movimento. E não, isso não é uma crítica aos colegas profissionais de Educação Física, aliás, é um incentivo a sua importância, pois, apesar de biologicamente não precisarmos aprender o movimento, devido ao estilo de vida contemporâneo essa característica virou uma necessidade cultural urgente. O profissional de Educação Física seria o profissional de linha de frente em relação a este problema.
O lado bom é que existem pedagogias que consideram a inteligência somatocinestésica no aprendizado, e essa parece uma tendência a se alastrar num futuro próximo. É importante que esse raciocínio chegue não só as escolas, mas aos profissionais que lidam com o desenvolvimento e reabilitação do movimento (fisioterapeuta, profissional de Educação Física, fonoaudiólogo). É contudo um conhecimento importante principalmente para os pais, para assim tentar modificar um pouco do ambiente domiciliar e permitir um pouco mais da aquisição natural da movimentação da criança em casa. Não é necessário vender suas casas e ir morar na savana, mas quem sabe pequenas adaptações no estilo de vida — por exemplo, deixar a criança ficar mais descalça, ou a família sair um pouco do sofá e fazer algumas tarefas no chão — facilitem o desenvolvimento motor dos pequenos.
Referências
[1] Lieberman DE. A história do corpo humano: evolução, saúde e doença. Editora Zahar, 2015.
[2] Lieberman DE. Is Exercise Really Medicine? An Evolutionary Perspective. Current Sports Medicine Reports; 14(4):313-9, 2015.
[3] Geary DC. An Evolutionarily Informed Education Science. Educational Psychologist Vol. 43 , Iss. 4,2008
[4] Myers, T. Kinesthetic dystonia: what bodywork can offer a new physical education. Journal of Bodywork and Movement Therapies; 2(2):101-14, 1998.
Sensacional a matéria! Eu sou professora de dança, formada em Licenciatura em Dança, e sempre tivemos discussões a respeito da importância do movimento na aprendizagem durante a faculdade. Como sou interessada em Fisio e Antropologia, nas minhas aulas de Dança do Ventre (que já é uma prática que pede o contato do pé no chão), estimulo minhas alunas a ficarem de cócoras, “amaciar” os pés, e até mesmo introduzo movimentos motores básicos como levantar o quadril saindo da cócoras, e todas demonstraram um resultado incrível em pouco tempo de aula tanto na postura, na dança e na saúde física.
Continuem postando esses materiais super importantes para tb servirem de motivação e engajamento para quem ainda, assim como eu, não pode fazer o curso!
Obrigada!