Proibir movimento faz sentido?

 

Você já percebeu como estamos cada vez mais cercados de regras para viver bem? A procura por “dicas de saúde” no Google rende mais de 13 milhões de resultados, e isso só em português! Entre todas essas orientações, o que não faltam são regras em relação ao que NÃO fazer. Proibições possuem uma longa tradição dentro da cultura de saúde humana. Platão já alertava, há 2500 anos, para o perigo de doces e pastelaria (1), e hoje em dia, seja no papo com a vizinha ou no grupo do Facebook, sempre vai ter alguém lhe dizendo o que você deve evitar a todo custo para não sofrer consequências danosas. Lembra daquela história de que ovo faz mal? Então…

Deixando a nutrição de lado, uma das áreas mais controversas e voláteis da ciência em saúde humana, chama a atenção o número de restrições e proibições com as quais somos confrontados diariamente em relação ao nosso movimento e à postura. E você certamente já ouviu algumas delas:

“Nunca dobre sua coluna para a frente”

“Evite torcer as suas costas”

“Não relaxe na postura”

“Não durma de bruços”

“Não vista-se ou ponha os calçados de pé”

“Não deite no chão”

“Não use um travesseiro baixo”

“Não olhe para baixo quando usar o celular”

“Não corra”

“Não carregue peso”

“Não levante os braços acima do nível do ombro”

“Não leve a mochila só de um lado”

“Não fique muito tempo em pé”

“Não ande de salto alto”

 

Todas as proibições acima foram extraídas de páginas online de profissionais da saúde. Ou seja, de pessoas que deveriam saber o que é melhor para você. Mas será que elas fazem sentido?

Restrições ao nosso movimento podem fazer sentido, sim. O melhor exemplo para isso é uma perna quebrada: continuar a movimentar os fragmentos impossibilita a consolidação óssea. Por isso, uma placa, uma órtese e o conselho de não pisar com este pé por algum tempo muitas vezes são indispensáveis.

Mas a ciência tem demonstrado que extrapolamos nossa preocupação com nossos pacientes. Em muitos casos, a imobilização tornou-se um vilão, e não um amigo. Nos últimos anos, caíram por terra várias recomendações bem corriqueiras dadas diariamente em consultórios e clínicas. Na dor lombar, por exemplo, o alerta para manter-se ativo e mover-se da forma mais normal possível já está hoje nas diretrizes internacionais (2,3). Em pacientes após prótese de quadril, constata-se que restringir movimentos na vida diária não só não faz diferença nenhuma a médio e longo prazo (4), como também posterga o retorno ao trabalho e diminui a qualidade de vida (5,6). Em relação ao uso do celular, autores de um grupo internacional revisaram a literatura quanto ao uso de equipamentos touch-screen portáteis (7) e somente encontraram evidência limitada para relacionar o seu uso com o surgimento de dores musculoesqueléticas. Entre os estudos, havia resultados completamente contraditórios, e um ensaio até apontou mais dor em pessoas que utilizavam o celular enquanto deitadas. Sem pesquisas melhores, portanto, e que conseguem identificar precisamente fatores confundidores (como duração de uso, comorbidades, alterações oftalmológicas, dor pré-existente, etc.), não há como assumir, de forma grosseira, que olhar para baixo numa tela de celular causa dor. Muito menos deve-se extrapolar estudos que calculam simples cargas mecânicas (com modelos matemáticos) e transpor seus resultados para algo tão complexo como a saúde humana.

Dobrar a coluna ou sentar de forma mais relaxada também já cairam fora da lista de “postura non grata” há bastante tempo. Um estudo relativamente recente entre 1108 adolescentes australianos (8) demonstrou não só que a postura curva não se correlaciona com dor de cabeça ou pescoço, mas reforçou que nosso tipo de postura é, muito mais do que um simples ato mecânico, um indicador do nosso estado de ânimo: entre os subgrupos posturais identificados, o mais curvo indicava uma prevalência maior de depressão entre os jovens. Está na hora, portanto, de mudarmos nosso ponto de vista sobre a postura humana, sairmos da visão mecanicista e interpretarmos o que de fato a postura representa para a saúde integral.

Até porque, em termos evolutivos, não há razão para sermos indivíduos retos, alinhados, simétricos e evitando o impacto. Nós, H. sapiens, sempre tivemos uma vasta gama de posturas e movimentos, e nos desenvolvemos como generalistas no dia-a-dia (9). Nossos antepassados foram corredores natos, pulavam, dobravam, torciam, caíam, puxavam, carregavam, manipulavam, e tudo isso durante centenas de milhares de anos. Nossos corpos, na verdade, foram moldados para o movimento assimétrico, não-linear, aleatório. Possuímos um potencial de provavelmente mais de 1000 posturas diferentes (10), e diferentes culturas ao redor do globo desenvolveram maneiras distintas, mas plenamente saudáveis, de sentar-se ou dormir (11). (Spoiler alert: dormir de bruços é algo muito difundido, ancestral e bem tolerado ao redor do planeta). É de estranhar, portanto, que estejamos dando ouvidos a conselhos bastante recentes, centrados num estilo de vida ocidental pós-industrializado e baseados em pouca ou nenhuma evidência científica, para guiar nossa saúde musculoesquelética, sem questionar os mesmos.

Talvez um dos motivos para tanta preocupação com posturas e movimentos “nocivos” seja a confusão frequente entre padrão de movimento e carga. Temos o péssimo hábito de culpar o padrão de movimento em si ao invés de investigar o tempo de uso, sua repetitividade, o estilo de vida geral e outros fatores modificadores. Ou seja: se um paciente tem dor ao levantar o braço, concluímos imediatamente que o movimento de elevação é danoso. Este atalho simplista e apressado de lógica ignora, no entanto, diversos outros fatores, dos quais só cito alguns poucos: o condicionamento e preparo físicos do indivíduo para tal movimento, comorbidades musculoesqueléticas, fatores psicossociais envolvidos e o estilo de vida. O problema não é levantar o braço – a grande questão é se tal carga está adaptada a uma tolerância momentânea do organismo para tal, e se essa tolerância é modificável, um detalhe importantíssimo, mas que é ignorado vastamente. E de forma muito rápida se chega ao veredito, completamente equivocado: “não pode, nunca mais vai poder”.

É aqui que entra a epidemia de sedentarismo que estamos presenciando no mundo ocidental hoje em dia. Estamos cada vez menos ativos, cada vez mais estressados e com cada vez mais doenças crônicas não-transmissíveis. Nosso estilo de vida atual cria um ambiente em que nos afastamos de nossas raízes fisiológicas, principalmente daquela que nos moldou na evolução: o movimento. Cada vez menos condicionados, sucumbimos à menor carga, e ainda culpamos o próprio movimento pela nossa pouca tolerância. Com isso, vem mais preocupação, e o medo de se mexer só aumenta. Psicólogos criaram um termo próprio para isso: a cinesiofobia. E o assustador neste mundo moderno é que nós, fisioterapeutas, já precisamos usar questionários para detectar este medo em nossas avaliações diárias dos pacientes.

Muito mais do que alguma postura taxada de “ruim” ou “errada”, um achado frequente hoje assola nossos consultórios: a cascata de imobilização. No frágil equilíbrio de saúde musculoesquelética em que se encontra o sedentário moderno, qualquer diminuição de movimento pode levar a uma sequência de eventos devastadora: dor provoca imobilização, que diminui ainda mais a condição física, o que, à próxima tentativa de movimento, gera mais dor e receio. E se tal cascata for reforçada por um profissional, salve-se quem puder.

Neste ambiente, impor uma restrição de movimento desnecessária pode ser fatal, ainda mais se a mesma vier de um médico, fisioterapeuta ou educador físico respeitado pelo paciente. Num sistema de saúde paternalista e altamente hierárquico, em que a responsabilidade sobre a saúde do paciente repousa sobre o profissional, é fácil proferir as palavras “não faça”. Reverter essa proibição, uma vez prescrita, é tarefa árdua. E mais árduo ainda é viver com as consequências de uma proibição infundada.

Aos colegas, quero somente recomendar que pensem muito bem antes de proibir qualquer coisa aos seus pacientes. Não temos mais reservas para a inatividade. É necessário um argumento à prova de bala para diminuir variabilidade e volume de movimento hoje em dia. A chance de você estar reduzindo a qualidade de vida do seu paciente é grande. Questione sempre se suas recomendações estão amparadas de fato na melhor evidência disponível. Primum non nocere.

Aos pacientes, fica a dica: esclareça suas dúvidas com o profissional de saúde. Tome as decisões em conjunto, questione conselhos que lhe pareçam rígidos demais, principalmente quando se trata de limitações e proibições à sua vida diária. Assuma a responsabilidade sobre sua saúde, e na via das dúvidas, ouça o seu instinto. Ninguém conhece melhor o seu corpo do que você.

P.S. 1.: aqui no blog há vários textos sobre a epidemia de sedentarismo e as diferenças entre nosso estilo de vida moderno e aquele para o qual evoluímos. Citar tantas referências novamente seria maçante demais. Se o assunto lhe interessa, dê uma pesquisada no site. Divirta-se, amigo primata!

P.S. 2.: algumas referências acabaram ficando de fora do texto, como a diretriz atual sobre dor cervical (que também orienta a atividade normal exceto em raros casos de bandeiras vermelhas) (12). Andar de salto alto pode até causar mais joanete, mas também é acompanhado de benefícios psicossexuais que podem compensar tal escolha, e portanto, a decisão sobre seu uso deve ficar sempre a critério do(a) usuário(a). (13). Como sempre, a dose define a saúde. Ah, e aquela história de que salto alto causa hiperlordose lombar não é verdade… (14). Efeitos do correr sobre a saúde articular não só dependem, mais uma vez, do volume e intensidade da corrida (15), mas a corrida em si também parece ter uma influência condroprotetiva sobre o joelho de pessoas saudáveis, diminuindo o risco de artrose (16).

Quanto a carregar cargas de forma assimétrica, a literatura disponível é parca e só investigou até agora as consequências deste movimento sobre o posicionamento da coluna, o que é insuficiente para inferir resultados sobre lesão, dor, saúde geral ou qualidade de vida. Conseguir desvencilhar a associação frequente entre a biomecânica e problemas de saúde é um dos desafios da abordagem biopsicossocial atual. Em outras palavras: “torto” não significa automaticamente “ruim”. Afinal, você pode gastar a vida inteira – e sua conta bancária – tentando ficar “alinhado”, o que não quer dizer que isso vá reduzir sua dor ou melhorar sua saúde.

 

Annemarie Frank é fisioterapeuta com dupla nacionalidade Homo neanderthalensis/Homo sapiens sapiens. Graduou-se em fisioterapia na terra dos Godos e possui formações em culturas como Maitland, Mulligan, Fisioterapia Esportiva e em terapia da pata dianteira. Atua em caverna própria no extremo Sul da Terra brasilis. 

 

Entre em contato com a Annemarie physiors@yahoo.com.br Gostou dos textos da Annemarie? Leia também estes: “Seu Signo É Sagital?“, “Muita Areia Pro Seu Caminhãozinho” ou  “De onde viemos e para onde estamos sentando?” ????

 

Referências

  1. Skiadas PK, Lascaratos JG. 2001. Dietetics in ancient Greek philosophy: Plato’s concepts of healthy diet. Eur J Clin Nutr 55(7):532-7.
  2. Airaksinen O, Brox JI, Cedrasch C et al. 2006. European guidelines for the management of chronic nonspecific low back pain. Eur Spine J 15(2): S192–S300.
  3. de Campos TF. 2017. Low back pain and sciatica in over 16s: assessment and management NICE Guideline [NG59]. J Physiother 63(2):120.
  4. Mikkelsen LR, Petersen MK, Søballe K, Mikkelsen S, Mechlenburg I. 2014. Does reduced movement restrictions and use of assistive devices affect rehabilitation outcome after total hip replacement? A non-randomized, controlled study. Eur J Phys Rehabil Med 50(4):383-93.
  5. Kuijer PPFM, de Beer MJPM, Houdijk JHP, Frings-Dresen MHW. Beneficial and Limiting Factors Affecting Return to Work After Total Knee and Hip Arthroplasty: A Systematic Review. Journal of Occupational Rehabilitation. 2009;19(4):375-381.
  6. van der Weegen W, Kornuijt A, Das D. 2016. Do lifestyle restrictions and precautions prevent dislocation after total hip arthroplasty? A systematic review and meta-analysis of the literature. Clin Rehabil 30(4):329-39.
  7. Toh SH, Coenen P, Howie EK, Straker LM. 2017. The associations of mobile touch screen device use with musculoskeletal symptoms and exposures: A systematic review. PLoS One 12(8):e0181220.
  8. Richards KV, Beales DJ, Smith AJ, O’Sullivan PB, Straker LM. 2016. Neck posture clusters and their association with biopsychosocial factors and neck pain in Australian adolescents. Phys. Ther. 96, 10:1576–87
  9. Lieberman, D. A história do corpo humano. Evolução, saúde e doença. 2015. Ed. Zahar, São Paulo.
  10. Hewes, GW. 1955. World Distribution of Certain Postural Habits. Am Anthropol 57: 231–244.
  11. Tetley M. 2000. Instinctive sleeping and resting postures: an anthropological and zoological approach to treatment of low back and joint pain. BMJ : British Medical Journal 321(7276):1616-1618.
  12. Blanpied PR, Gross AR, Elliott JM, Devaney LL, Clewley D, Walton DM, Sparks C, Robertson EK. 2017. Neck Pain: Revision 2017. J Orthop Sports Phys Ther 47(7):A1-A83.
  13. Barnish M, Morgan HM, Barnish J. 2017. The 2016 HIGh Heels: Health effects And psychosexual BenefITS (HIGH HABITS) study: systematic review of reviews and additional primary studies. BMC Public Health. 2018;18:37.
  14. Baaklini E, Angst M, Schellenberg F, Hitz M, Schmid S, Tal A, Taylor WR, Lorenzetti S. 2017. High-heeled walking decreases lumbar lordosis. Gait Posture 55:12-14.
  15. Alentorn-Geli E, Samuelsson K, Musahl V, Green CL, Bhandari M, Karlsson J. 2017. The Association of Recreational and Competitive Running With Hip and Knee Osteoarthritis: A Systematic Review and Meta-analysis. J Orthop Sports Phys Ther 47(6):373-390.
  16. Hyldahl RD, Evans A, Kwon S, Ridge ST, Robinson E, Hopkins JT, Seeley MK. 2016. Running decreases knee intra-articular cytokine and cartilage oligomeric matrix concentrations: a pilot study. Eur J Appl Physiol 116(11-12):2305-2314.

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