Em poucas palavras o papel da Corrida Ancestral é observar a corrida e/ ou a atividade física pelo prisma evolucionário. Mas o que isso significaria na teoria e na prática?

 

Perspectiva evolucionária

 

“A atividade física é indiscutivelmente o fator de condução da evolução”(1). Consequentemente, a locomoção e o desempenho físico têm sido áreas focais de pesquisa em biologia evolutiva, fisiologia e antropologia com informações de valor potencialmente enorme para melhorar a compreensão atual da dinâmica da variação interindividual nas respostas efetivas à atividade física(2). Acredita-se que a capacidade de desempenho físico esteja intimamente relacionada com a adaptação e a aptidão evolutiva, o sucesso reprodutivo relativo de um genótipo (3-10).

De acordo com Bennett e Ruben(11):

“As vantagens seletivas do aumento da capacidade de atividade não são sutis, mas sim centrais para a sobrevivência e reprodução. Um animal com maior resistência tem uma vantagem que é facilmente compreensível em termos seletivos. Pode sustentar níveis de perseguição ou fuga, na coleta de alimentos ou evitar tornar-se alimento. Será superior em defesa territorial ou invasão. Será mais bem sucedido no acasalamento.”

Contudo a evolução tem sido quase ignorada pelas Metodologias de Treinamento Esportivo, mesmo sabendo que muitas das implicações adaptativas da atividade física parecem ter permanecido invariantes. Em outras palavras, como caçadores e coletores (isto é, para aproximadamente 99% de sua história natural), os seres humanos tiveram que estar ativos para permanecer vivos e permanecer vivos enquanto estavam ativos. (2)

A anatomia do esqueleto pós-craniano e fisiologia humana permanecem essencialmente inalteradas desde seus primeiros ancestrais (12), aproximadamente 2,8 milhões de anos (13).

A corrida como característica essencial da espécie e a balança: Biologia vs. Cultura

Embora os humanos sejam comparativamente pobres velocistas, eles se envolvem em outro tipo de corrida, a corrida de endurance, definida como corrida de longas distâncias, por longos períodos de tempo utilizando o metabolismo aeróbio. Um dos principais motores para o desenvolvimento dessa característica na espécie, pode ter sido a caça de persistência. (12)

Apesar de a corrida ser vista como uma habilidade evolutiva do Homo sapiens,

“a seleção natural moldou o genoma humano não para correr maratonas ou exclusivamente levantar pesos extremamente pesados, mas em vez disso, para sobreviver e prosperar ao ar livre, sendo muito ativo e generalista em ambiente selvagem” (14).

Isso também deve ser levado em conta em planejamento global de treinamento de corrida.

Hoje em dia a habilidade de correr perdeu a função de caça ou deslocamento, pelo menos no nosso contexto sócio-cultural, e as competições tomaram a função. Dessa forma, a corrida de humanos sofre pressões culturais e não mais biológicas (mesmo quando os corredores se engajam por finalidade de saúde).

Assim, batemos na tecla de que a “corrida industrializada” subjuga a capacidade biológica, colocando necessidades culturais a frente da própria evolução, criando uma incompatibilidade biológica emergente.

A habilidade motora de correr seria um bom indicador de de maturação do sistema de movimento humano, uma vez que faz parte do repertório humano de deslocamento. Mas veja bem, isso não implica na habilidade de completar uma corrida de rua de “x” quilômetros, em determinado tempo. No contexto evolutivo não haveria muita utilidade sustentar por 30 a 60 minutos uma corrida em intensidade próxima ou superior ao Limiar Anaeróbio, como acontece em uma corrida de 10km, por exemplo. Ou seja, apesar da corrida ser natural, treinar para uma prova e completá-la, não. Isso faz parte de um fenômeno cultural!

Outro ponto importante a ser ressaltado é que nós não nos opomos ao contexto cultural, muito pelo contrário, eu (Vitor Carrara) participo de competições e treino pessoas para isso. Porém entendemos a urgência, inclusive de utilidade para saúde pública, de equilibrar a balança “Biologia vs. Cultura”.

Isso significa que em termos de funcionalidade e movimento, defendemos que uma pessoa deve-se tornar um humano corredor (Biologia), antes de se tornar um corredor esportivo (Cultura). E também lançar mão de estratégias que possam ser aplicadas a rotina de chamados “atletas” ou “corredores”, para aproximar suas condições gerais de seu sistema biológico, amortizando a exposição a lesões e até ampliando sua performance biológica e cultural.

Por essa perspectiva, temos (Corrida Ancestral) nos posicionado muito a respeito das aplicações desse paradigma na biomecânica, ou seja, no gesto motor, ou técnica da corrida, e suas implicações na profilaxia de lesões, em detrimento ao que chamamos de “corrida industrializada”. Normalmente essas pesquisas são relacionadas à Morfologia e Cinesiologia. A nossa vanguarda, temos respaldo de pesquisadores de ponta, envolvidos nessas questões. Daniel Lieberman pode ser citado como um dos expoentes.

Porém, até aqui, expressamo-nos pouco sobre o universo do Treinamento Esportivo e suas implicações práticas na rotina do treinador e do corredor para incrementar saúde global e desempenho.

Treinamento evolucionário?

Genericamente a Metodologia do Treinamento Esportivo “é a forma fundamental de preparação, baseada em exercícios sistemáticos, representando um processo organizado pedagogicamente com o objetivo de direcionar a evolução do desportista”.(15)

É importantíssimo ressaltar que nosso trabalho não é tentar anular paradigmas com os quais foram construídos pensamentos e diretrizes do treinamento, mas queremos reciclá-las, acrescentando as novas investigações acerca da evolução e sua aplicabilidade nesse contexto.

Boas investigações que relacionam uma visão evolucionária a metodologia do treinamento em si, são escassas. Tim Noakes(16) e O’keefe(14) tem feito isso com a fisiologia do exercício, bem como Daniel A. Boullosa, da universidade católica de Brasília, que publicou um interessante artigo no Sports Med em 2013(17).

Porém na prática, aplicando esses novos paradigmas na rotina de treinamento de corredores, recreacionais ou de elite, de forma organizada, é ainda mais raro. Conheço Mark Cucuzzella do Natural Running Center(18) e Paolo Lavagnilio do Barefoot Running Itália(19).

Atuando na área de treinamento há 20 anos, como atleta, treinador e professor de graduação e sempre me questionei a respeito das estratégias clássicas e vigentes do treinamento de corrida e sua eficácia e impacto positivo em corredores recreacionais, aqueles que não se relacionam com corrida profissionalmente.

Com base no trabalho da Corrida Ancestral e da FBA, venho formulando novas possibilidades no treinamento, desde 2014. Iniciei aplicando em mim, com incremento substancial na minha saúde e desempenho em corridas longas de montanha, e desde 2016, ampliando para os atletas sob meus cuidados no “Clã Ancestral – Corrida de Montanha”.(20)

Este conteúdo é o primeiro passo para começar a organizar essas indagações, ainda que de forma superficial e limitada, a visão Ancestral da prática do Treinamento da Corrida. E, sobretudo, dividir e trocar com corredores e colegas treinadores.

Então te convido à aventura de desenvolver com a Corrida Ancestral esse raciocínio e prática. Digo aventura, porque me parece que somos pioneiros na utilização desse paradigma no treinamento de corrida.

Alimentando nossas raízes biológicas ancestrais, estaremos mais aptos a desfrutar de prazeres culturais modernos, como completar uma corrida de rua ou montanha com excelente desempenho, otimizando a saúde e disposição global, gozando de plena qualidade em outras esferas, como nosso ciclo circadiano (que regula a recuperação), alimentação (eliminando necessidade de suplementações artificiais) e alto nível de sociabilidade (família, amigos e comunidade). E ainda nos empoderando contra os dogmas e mitos mercadológicos e tecnológicos que dominam o senso comum na corrida moderna!

No próximo conteúdo discutiremos a Periodização do Treinamento.

 

Caso você tenha interesse em enriquecer sua visão sobre esse assunto, te convido a conhecer nosso Curso Livre de Corrida Ancestral: Corra como um Humano

 

Referências

  1. Woakes, A. J. (1991). Introduction. Journal of Experimental Biology, 160, i – ii.
  1. Panteleimon Ekkekakis , Eric E Hall & Steven J Petruzzello (2005) Variation and homogeneity in affective responses to physical activity of varying intensities: An alternative perspective on dose – response based on evolutionary considerations, Journal of Sports Sciences, 23:5, 477-500
  1. Arnold, S. J. (1983). Morphology, performance, and fitness. American Zoologist, 23, 347 – 361.
  1. Bennett, A. F., & Huey, R. B. (1990). Studying the evolution of physiological performance. In D. Futuyma & J. Antonovics (Eds.), Oxford surveys in evolutionary biology (Vol. 7, pp. 251 – 284). New York: Oxford University Press.
  2. Garland, T., & Lossos, J. B. (1994). Ecological morphology of locomotor performance in squamate reptiles. In P. C. Wainwright & S. M. Reilly (Eds.), Ecological morphology: Integrative organismal biology (pp. 240 – 302). Chicago, IL: University of Chicago Press.
  1. Irschick, D. J. (2002). Evolutionary approaches for studying functional morphology: Examples from studies of performance capacity. Integrative and Comparative Biology, 42, 278 – 290.
  1. Irschick, D. J., & Garland, T. (2001). Integrating function and ecology in studies of adaptation: Investigations of locomotor capacity as a model system. Annual Review of Ecology and Systematics, 32, 367 – 396.
  1. Leonard, W. R., & Ulijaszek, S. J. (2002). Energetics and evolution: An emerging research domain. American Journal of Human Biology, 14, 547 – 550.
  1. Plaut, I. (2001). Critical swimming speed: Its ecological relevance. Comparative Biochemistry and Physiology Part A, 131, 41 – 50.
  1. Pough, F. H. (1989). Organismal performance and Darwinian fitness: Approaches and interpretations. Physiological Zoology, 62, 199 – 236.
  1. Bennett, A. F., & Ruben, J. A. (1979). Endothermy and activity in vertebrates. Science, 206, 649 – 654.
  1. Dennis M. Bramble & Daniel E. Lieberman. Endurance running and the evolution of Homo. Nature. Vol 432 . 18 November 2004. 
  1. Villmoare, B., . Kimbel, W. H.,  Seyoum, C.,  Campisano, C. J.,  DiMaggio, E., Rowan, J.,  Braun, D. R.,  Arrowsmith, J. R.,  Reed, K. E. Early Homo at 2.8 Ma from Ledi-Geraru, Afar, Ethiopia. www.sciencemag.org/content/early/recen 5 March 2015. Page 1 to 5. 10.1126/science.aaa1343.
  1. O’Keefe, J. H.,  Vogel, R., Laviec, C. J., Cordaind, L. Exercise Like a Hunter-Gatherer: A Prescription for Organic Physical Fitness. Progress in Cardiovascular Diseases 53 (2011) 471–479.
  1. Matvéev. L. P. Fundamentos del entrenamiento deportivo. Ed. Ráduga. Moscú, 1983.
  1. Noakes,  Lambert, M. The Influence of Sensory Cues on the Perception of Exertion During Exercise and Central Regulation of Exercise Performance. Sports Med 2001; 31 (13): 935-952.
  1. Boullosa. D. A.,  Abreu, L. , Varela-Sanz, A. & Mujika I. Do Olympic Athletes Train as in the Paleolithic Era? Sports Med (2013) 43:909–917
  2. http://naturalrunningcenter.com/ Acesso em: 18 de Abril 2017.
  3. https://www.facebook.com/iavagniliopaolo?fref=ts Acesso em: 18 de Abril 2017.
  4. https://www.facebook.com/claancestral/?fref=ts Acesso em: 18 de Abril 2017.

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