O movimento humano a partir da perspectiva da evolução
Por Pablo Santurbano e Annemarie Frank
Queixas do sistema musculoesquelético estão em ascensão em nossa sociedade.
Descubra por que no estudo de caso apresentado não é suficiente fazer um treinamento na esteira, Pilates e natação três vezes por semana para compensar a atividade sedentária ocupacional?
Dois autores brasileiros abordam deficiências na recente teoria do movimento e mostram como podemos nos beneficiar de Biologia Evolutiva.
Por que a sociedade moderna sofre?
Os problemas musculoesqueléticos, claramente, são uma pandemia no mundo civilizado [1-3]. No entanto, considerando toda a nossa história, isso acontece apenas recentemente. Uma das causas disso poderia ser um conflito entre a biologia humana e o meio culturalmente incompatível. Ainda vivemos com um corpo Paleolítico; contudo, o nosso estilo de vida moderno orientado para a vida de conforto em um ambiente altamente mecanizado é fundamentalmente diferente ao qual nos adaptamos evolutivamente por um longo tempo.
Nunca antes nossa espécie teve que lidar com tal falta de movimentação. É plausível que doenças e morte prematura apareçam como resultado disso porque, tanto o nosso sistema cardiovascular e quanto o musculoesquelético são capazes de lidar com essas mudanças apenas parcialmente.
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O termo pandemia vem da palavra grega que significa em termos gerais o “povo todo “. Sua importância foi gradualmente ampliada, significando atualmente “doença de toda uma população”. Esta é uma doença transnacional, epidemia que cobre praticamente toda a população de uma área geográfica.
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Atletas e pacientes
As pessoas nascem fundamentalmente para serem atletas e não inativos crônicos. Fisioterapia e Ciências do Movimento podem ter papeis importantes, a fim de atenuar as consequências de um estilo de vida caracterizado por incompatibilidades evolucionárias. Infelizmente, este foco tem sido amplamente ignorado pelos profissionais de saúde. Para compreender e lidar com o conflito entre o nosso potencial biológico natural e os hábitos socioculturais contemporâneos, alguns padrões de raciocínio devem ser fornecidos com urgência, convocando ao questionamento.
Movimento e exercício são duas coisas diferentes
A natureza não está, em geral, interessada em saúde, no sentido de bem-estar, mas, sim, em sucesso reprodutivo. Para os nossos antepassados, isto significa que apenas aqueles que foram capazes de transmitir seus genes, foram capazes de percorrer longas distâncias, subir, escavar, lutar e realizar inúmeros outros movimentos diariamente.
Nos dias de hoje, nós também estamos em movimento, – no entanto os nossos movimentos modernos são muitas vezes incapazes de fornecer os estímulos necessários para garantir que o sistema musculoesquelético explore seu potencial biológico e permaneça completamente saudável.
Exercícios, mesmo se eles forem individualizados e prescritos por um especialista, permanecem sendo apenas uma tentativa artificial de criar movimento. Mesmo com a melhor das intenções, os exercícios tradicionais provocam cargas do sistema movimento que estão afastadas das solicitações e condições naturais. [4]
Além disso, estudos científicos indicam que, mesmo a atividade física diária não é capaz de compensar adequadamente as graves consequências da falta de movimento, como permanecer longos períodos sentado no trabalho [5-7]. Devemos considerar como podemos trazer uma maior quantidade de movimento, e mais natural, para nossa vida cotidiana, impondo cargas que aproximam nossa falta de movimento daquilo que seria pela perspectiva evolucionária uma saúde biomecânica adequada.
A teoria da evolução biológica tem sido negligenciada
Se o movimento e exercício são tão diferentes, em princípio, como poderíamos por tanto tempo ter corrompido esses conceitos, e por que nossos exercícios refletem o movimento natural do ser humano tão mal assim?
Para entender este fato, devem ser observadas três condições:
- A teoria tradicional de movimento é baseada em dissecções anatômicas, que surgem no contexto histórico da medicina contemporânea, o princípio é baseado em cortar e reduzir. Por conseguinte, os princípios de orientação do exercício se desenvolveram de forma semelhante. Um exemplo do pensamento segmentar dentro da prática da atividade física é o treinamento de força tradicional, que divide os exercícios em grupos de músculos. A Fisioterapia foi influenciada por este ponto de vista. Desenvolveu-se, assim, uma tendência de pensar e agir com base em um modelo puramente anatômico, principalmente de acordo com tecidos específicos, em vez de movimentos e funções evolucionárias.
- A Fisioterapia é resultante, principalmente, da ciência médica. E esta última tem evoluído principalmente a partir da intervenção de emergência, no cuidado de acidentes, infecções e outras situações agudas. Isto significava que o foco da pesquisa foi geralmente colocado sobre a doença e suas consequências, ao invés de questões fundamentais sobre o corpo e movimento.
- A Biologia Evolutiva só se desenvolveu consideravelmente mais tarde, depois de muitas décadas da medicina moderna se desenvolver. Embora a Biologia seja uma ciência mais rígida e, portanto, hierarquicamente superior em relação às Ciências da Saúde, as novas descobertas biológicas não foram incluídas ou revisadas nesse sentido.
Para preencher esta lacuna o mais rápido possível, a fim de sanar as deficiências no conhecimento dos profissionais de saúde sobre o movimento humano, a Biologia Evolutiva deve ser revisada e integrada nas Ciências da Saúde. [8-10]
O objetivo é que o paciente possa fortalecer a sua capacidade de se aproximar da função e da movimentação original e, assim, tomar medidas preventivas especialmente voltadas para o movimento, a fim de ter a própria saúde nas mãos.
Caso clínico: quando falta caminhada
Anamnese
Sra T., 62 anos, destra nas mãos e nos pés. Trabalha para a Agência de Proteção Ambiental, senta-se cerca de oito a dez horas por dia e anda apenas curtas distâncias a pé. Mesmo assim, ela é muito consciente sobre saúde e está tentando fazer o melhor para compensar a falta de movimento: alternar natação e Pilates duas vezes por semana com esteira três vezes por semana. Desde que se mudou há mais de 6 meses, sofre cada vez mais de dor na nádega esquerda, irradiando pela região anterolateral da coxa. Ela também se queixa de uma sensação de fadiga em ambas as coxas anteriores.
Diagnóstico
As bandeiras vermelhas foram excluídas, uma RMN da pelve não apontou qualquer achado patológico. Há alguns anos, ela sofreu um entorse em inversão do tornozelo esquerdo, relata que muitas vezes tropeça. Fisioterapia com TENS, alongamento e fortalecimento muscular durante seis semanas não ajudou. No exame clínico observou-se diminuição de extensão de quadril bilateral, diminuição da flexibilidade dorsal do tornozelo esquerdo e pontos-gatilho miofasciais ativos nas áreas posteriores do glúteo médio e mínimo à esquerda.
Embora a Sra T. já utilize de diversas estratégias diferentes para compensar o longo período sentada no trabalho, é claro que algumas importantes funções naturais do membro inferior foram negligenciadas: caminhar, correr, saltar, ficar de cócoras. A esteira parece não oferecer meios razoáveis para o que a extensão do quadril tem para oferecer: de acordo com estudos feitos sobre o tema, ocorreria uma ativação dos posteriores menor na esteira do que em terreno plano, por causa de um comprimento de passada mais curto, junto a um aumento da ativação do reto femoral (11-14). Acrescente-se isso, no caso descrito, a restrição de dorsiflexão do tornozelo esquerdo desde o trauma em inversão.
Tratamento
Inicialmente, os pontos-gatilho miofasciais foram tratados com compressão manual, e técnicas de Mulligan e taping foram aplicadas ao tornozelo esquerdo. No entanto, estas medidas levaram a apenas uma melhora de curto prazo ao longo de três dias. Depois disso, as funções ativas foram sugeridas no que diz respeito a uma rotina de exercícios mais equilibrada e natural: a Sra T., inicialmente, deveria uma vez por semana caminhar no parque ao invés de caminhar na esteira, além de ficar pelo menos uma vez por dia o maior tempo possível em agachamento profundo. Como ela mostra pouca complacência para fazer trabalhos de casa, tenta-se intervir do modo mais suave possível em sua rotina diária.
Evolução da terapia
Sra. T. foi capaz de implementar bem as propostas. Ela relatou que faz um esforço muito maior para caminhar no parque do que na esteira. Ela, então, teve de ajustar na primeira semana o percurso, de modo que não chegasse tão rapidamente a fadiga. A postura cócoras, agachamento profundo, foi bem executada, estando ciente de que os joelhos não apontem para dentro.
Após três semanas, uma diminuição de queixas por Escala Visual Analógica em 60%. A dor ocorreu com muito menos frequência e em menor intensidade. Sra T. vai continuar a tentar substituir a caminhada na esteira cada vez mais pela caminhada no parque, e interromper, o tanto quanto possível, o longo tempo sentada, movimentando-se ou variando o posicionamento. Outras funções, como salto, apoio unipodal e sentar-se no chão foram adicionadas gradualmente para expandir ainda mais seu repertório de movimento natural.
Resumo
Um problema dos tempos atuais é a falta geral de movimento: seja em crianças, adolescentes ou adultos. Isso resulta em muitas das doenças mais comuns que causam elevados custos econômicos. Vários programas de prevenção estão tentando minimizar os riscos e desenvolver comportamentos que promovam a saúde. Como úteis são essas medidas? É esta a melhor solução ou talvez devêssemos dar maior suporte para o entendimento da movimentação natural?
[flat_box icon=”icon-lamp” icon_image=”” background=”” image=”” title=”Publicado por Carl Sagan, astrofísico americano (1934-1996)” link=”http://www.csicop.org/si/show/why_we_need_to_understand_science” target=”” animate=””]
“Vivemos numa sociedade extremamente dependente da ciência e da tecnologia, na qual quase ninguém sabe nada sobre ciência e tecnologia”.
— “Why We Need To Understand Science” in The Skeptical Inquirer Vol. 14, Issue 3 (Spring 1990)
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Observações
- Nosso corpo paleolítico não está adaptado para o nosso estilo de vida altamente tecnológico e inativo.
- Mesmo exercícios individualizados, conduzidos por profissionais, representam apenas uma compensação artificial do potencial de movimento humano.
- Fisioterapia moderna deveria também adotar outras medidas para reduzir os sintomas que são causados pela falta de movimento.
Artigo originalmente publicado na edição de janeiro de 2017 na revista alemã de Fisioterapia “pt_Zeitschrift für Physiotherapeuten“
Autores
Pablo Santurbano
Completou os estudos Fisioterapia em 2005 e fez especialização em Fisiologia do Exercício pela UNIFESP-EPM; e realizou várias formações em cursos livres na área de musculoesquelético. Em 2011 desenvolveu e facilita desde então o curso FBA no Brasil.
Annemarie Frank
Fisioterapeuta com dupla nacionalidade brasileira e alemã; nascida em Porto Alegre/Brasil; graduação Berufsfachschule Ingolstadt de 1998 a 2001; até fevereiro de 2013 fisioterapeuta no hospital Klinikum Ingolstadt; atualmente trabalha como fisioterapeuta em consultório próprio em Porto Alegre.
Leitura recomendada
Lieberman DE. A História Do Corpo Humano: Evolução, Saúde E Doença. Rio de Janeiro: Zahar; 2015.
Referências bibliográficas
(1) D Hoy, Geere SIM, Davatchi F, Meggitt B, Barrero LH. 2014. A hora de agir: Oportunidades para Prevenir a crescente carga e incapacidade de condições musculoesqueléticas em países de baixa e de renda média. Melhor Prática e Investigação Clínica Reumatologia 28
(2) Murray CJ, Vos T, R Lozano, Naghavi H, Flaxman AD, et ai. 2013. anos de vida ajustados por incapacidade (DALY) para 291 doenças e lesões em 21 regiões, 1990e2010: uma análise sistemática para a carga global da doença estudo Lancet 2010 380: 2197-223
(3) T Vos, Flaxman AD, Naghavi M, Lozano R, C Michaud, et al. 2013.Years vividos com incapacidade (YLD) para 1160 sequelas de 289 doenças e lesões 1990e2010: uma análise sistemática para a carga global da doença estudo Lancet 2010 380: 2163-96
(4) DE Lieberman. 2015. É o exercício realmente medicamento? Uma perspectiva evolutiva. Sports atual Medicine relata que 14, 4: 313-9
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(14) B Hanley, Mohan AK. 2014. Alterações na marcha durante constante ritmo corrida em esteira. J. Cond força. Res 28, 1219-1225 5 :.
Muito bom o texto. E mais importante, simples.