Texto por Annemarie Frank

 

Esses dias eu estava folheando uma daquelas autointituladas “bíblias” de treinamento funcional. Buscava ideias para exercícios terapêuticos e queria me manter atualizada no que meus pacientes fazem quando vão a centros modernos de treinamento físico. Foi quando percebi um padrão comum à grande maioria dos exercícios e movimentos propostos, e que eu já havia observado em outras referências bibliográficas e vídeos. Resolvi contar, fazer uma estatística pessoal. De todos os exercícios descritos, 64% -a grande maioria- estimulavam somente movimentos no plano sagital. Ou seja, a direção do movimento principal do exercício (sem contar micromovimentos necessários à adaptação e estabilização no plano) era flexo-extensão. Os exercícios cujo movimento situava-se no plano frontal (latero-lateral) não chegavam a 3% em todo o livro, mesmo percentual daqueles que tinham como plano de ação o transverso, de rotação. Ao menos, para meu alívio, 24% dos exercícios combinavam movimentos nas três dimensões.

Eu entendo que nossas principais curvaturas corporais são de flexo-extensão. O primeiro movimento que realizamos em nosso desenvolvimento é o da cifose primária e completa às curvaturas secundárias, de lordose. Mas será que precisa ficar assim para sempre?

Nossa evolução como hominídeos nos fez criar movimentos diários complexos e em 3D. Praticamente todos os movimentos que fizemos durante milhões de anos como caçadores-coletores incluem elementos em todos os planos, surgidos do caos e ordenados frequentemente de forma espiral. Típico exemplo é o do arremesso, o qual deixou marcas profundas em nossa anatomia até hoje. A torção umeral é resquício da utilização do membro superior em movimentos de arremessar objetos, como lanças, pedras ou semelhantes, e que inclui todos os planos do membro no espaço: flexo-extensão, leve deslocamento latero-lateral e rotação.

Caminhar, ao contrário do que fazem parecer as paradas militares do aniversário da “Queen” britânica, é mais um exemplo perfeito da importância da sintonia entre movimentos tridimensionais. Tire a rotação da caminhada, e você terá um robô, ou o Bob Esponja.

E a lista continua. Rastejar, saltar (aquele abraço aos rotadores do quadril!), nadar, lutar, deitar-se, levantar da cama, alcançar (a escápula manda lembranças!), e até respirar: não há um só movimento em que não ocorram elementos em todos os planos.

Por que, então, nosso repertório de exercício é tão focado na simetria perfeita e na otimização de movimentos puros? Lunges em todas as variações (a menor parte delas são as laterais), com coxas perfeitamente alinhadas, squats com membros inferiores paralelos e ombros e patelas alinhadas olhando para a frente, crunches com infinitas variações do “como aproximar a cabeça dos joelhos”, perfeito sagitalmente.

Na história recente da humanidade, tentamos ganhar conhecimento e organizá-lo sistematicamente. Como descendente de alemães que sou, sei bem do que estou falando: organizar é um show, é um TOC maravilhoso! Classificar, categorizar, dissecar, seccionar. Tudo no seu devido lugar. A anatomia na qual se fundamenta o ensino médico é o perfeito exemplo disso. Criamos três planos dimensionais para explicar o espaço ao nosso redor, e organizamos tudo, incluindo o corpo humano, nesse sistema.

A revolução industrial fez o resto, e provocou ambientes de vida e trabalho altamente “funcionais” – mas de forma absurda. Aqui, o termo “funcional” só serve para designar a funcionalidade para a produção, mas não àquele que está produzindo. O foco no produto, no resultado e na performance material criou ambientes em que a meta é não-humana. E, acompanhando a tendência do tempo, a meta e seu entorno são sistematizados e organizados, geométricos. Foram-se as formas ainda curvas do barrroco e do rococó, eliminou-se as vaidades não-produtivas. Nós, seres humanos, tivemos que nos adequar à geometria.

Em nosso dia-a-dia, também fomos eliminando aos poucos aqueles movimentos “improdutivos” na realidade em que vivemos. Com o advento de máquinas e da automatização, foram-se embora as caçadas, os arremessos, os saltos, as escaladas, a suspensão, as caminhadas longas. Adentramos no reinado do que viraria, 200 anos mais tarde, um dos maiores vilões à saúde cardiovascular: a cadeira. E reduzimos, aos poucos, nosso repertório de movimentos ao mínimo: sentar e levantar. Da cadeira, é óbvio. Flexo-extensão. As cadeiras ganharam rodinhas, para que fossem elas, e não nós, os que giram para falar com o colega, para pegar um lápis, para alcançar um arquivo. Cavalos foram substituídos por cadeiras sobre rodas com emblemas chiques em sua carroceria. Até para colher a lavoura sentamos num trator.

E assim, nos deparamos cada vez mais, em nossos consultórios, com idosos (ou nem tanto) que citam o “girar na cama” como o movimento mais difícil do dia-a-dia. Com adolescentes que não conseguem mais ficar num pé só. Com adultos treinados cuja musculatura abdominal é perfeita por fora – mas que falham no controle rotacional. E com comerciais de cadeiras que agora não são mais cadeiras, mas leitos, para que continuemos trabalhando mesmo quando nossa resistência postural já não é mais suficiente nem para sentar.

Estamos presos a um plano – nosso signo virou o “sagital”. E, se não prestarmos atenção, ainda perderemos até este.

Usei esta lista aqui (menshealth.com/fitness/best-glutes-exercises), achada aleatoriamente no Google, para fazer uma imagem de divulgação para a postagem. E, para minha surpresa, a lista acabou refletindo exatamente a a estatística do início do texto: dos 17 exercícios para glúteos, 14 são no plano sagital. É como se os glúteos fossem somente flexo-extensores…

Será que temos medo de sair da simetria? Será que receamos “lesões”, ainda presos à obsoleta e falha teoria de que a rotação provoca altas cargas sobre os discos intervertebrais, que devem ser evitadas? Será que este comportamento evitativo tem fundamento? Hoje, sabemos que não.

Um dos primeiros conceitos dentro da fisioterapia ocidental que quebrou com a isolação de movimentos foi o PNF – Facilitação Neuromuscular Proprioceptiva. Ainda lembro de quando tínhamos de decorar os três planos de cada movimento na graduação: flexão – abdução – rotação externa, flexão – adução – rotação interna, e por aí vai. Foi um sufoco, mas valeu a pena, pois PNF é um dos conceitos mais utilizados na reabilitação (principalmente neurológica), e impulsionou o pensamento sobre o controle neuromuscular em todas as áreas. Décadas atrás, ele já nos lembrava de que não há isolação no movimento humano natural.

Muitos profissionais, hoje em dia, refletem a evolução desta ideia e desenvolvem treinamentos criativos, muito bem adaptados às necessidades de movimento do corpo humano, e que entendem que um bom repertório de treino não é formado somente por variações múltiplas de um mesmo agachamento.

Mas está na hora de quebrarmos ainda mais e com mais frequência a dominância do pensamento flexo-extensor dentro do universo da saúde e movimento. Se quisermos pensar em FUNÇÃO, não podemos escolher somente um dos seus planos, mas sim a sua integralidade.

[Gostou dos textos da Annemarie? Dê uma olhada neste aqui também “De onde viemos e para onde estamos sentando”]

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