Repensando cabeça e ombro através da perspectiva evolutiva

A evolução do complexo do ombro ainda é uma área pouco desenvolvida dentro da biologia e medicina evolutiva. Embora já saibamos alguma coisa sobre nossa especialização em manipulação e arremesso em relação a nossos antecessores (1,2,3), o desenvolvimento de muitas funções e seus motivos ainda permanecem na escuridão. Novas hipóteses e achados podem contribuir não só para iluminar a compreensão sobre nosso passado evolutivo, mas principalmente para aprimorar o manejo de problemas clínicos relacionados a esta parte do corpo humano.

Michelle Osborn, pesquisadora e professora assistente da Universidade do Estado da Louisiana/EUA, dedica-se há alguns anos ao estudo de anatomia comparativa, morfologia evolutiva e biomecânica, especialmente da região entre cabeça, pescoço e ombro. Em seu artigo de 2015 (4), ela propõe uma nova hipótese para o entendimento da relação entre ombro e cabeça. Seu trabalho é interessantíssimo, e mereceu um enfoque com este texto. A pergunta inicial que levou à sua pesquisa era: “quais seriam as razões para que nós, humanos, tivessemos um processo mastoide e uma clavícula tão desenvolvidos, se essas estruturas causam tantos problemas, seja durante o parto ou ao longo da vida?”. De fato, uma clavícula comprida atrapalhando durante o parto e um processo mastoide propenso a infecções (em parte, letais) não seriam selecionados em nossa evolução se não houvesse um motivo muito bom para que estivessem ali.

Processo mastoide e clavícula são inserções para um grupo muscular bastante importante. O M. esternocleidomastoide (ECM) e o M. trapézio, junto às suas fáscias, atuam em sinergia quanto aos movimentos de cabeça e pescoço, desenvolvem-se do mesmo primórdio embrionário e são inervados pelo mesmo nervo (XI, N. acessório). Embora tendo nomes e estrutura levemente variáveis, eles estão evidentes em todos os mamíferos, compondo a ligação entre cintura escapular e cabeça. O processo mastoide, no entanto, só é bem desenvolvido em humanos, assim como a clavícula, osso que em alguns animais (cavalos, vacas e cabras) falta por completo. Em compensação, nossa linha nucal é fina quando comparada a animais quadrúpedes. (5)

O hábito de seccionar estruturas anatômicas fez com que, historicamente, separássemos a cabeça do ombro em nosso raciocínio biomecânico. Trapézio e ECM são categorizados, respectivamente, como estruturas da cintura escapular e do pescoço. Sua origem embrionária comum e suas inserções cranianas, infelizmente, são relegadas a um segundo plano.

Estruturas ósseas formam e moldam-se conforme a carga mecânica exercida sobre elas. Neste sentido, o formato e o desenvolvimento de um osso podem gerar pistas sobre as forças biomecânicas atuantes. No caso de mastoide e clavícula, o trabalho de Osborn consegue demonstrar que seu volume maior é consequência das forças exercidas sobre eles a partir das estruturas miofasciais de trapézio e ECM. Em sua pesquisa, foram avaliados 101 cadáveres, sendo 54 deles de conhecida dominância manual direita. A autora mensurou características ósseas como comprimento e largura do processo mastoide, comprimento da clavícula, espessura da primeira costela, expressão da linha nucal, largura do úmero e da escápula. Além da constatação de que existe uma assimetria significativa dessas estruturas presente de forma regular, a comparação entre os achados ósseos e a dominância dos indivíduos confirmou que a assimetria de dominância se reflete na estrutura óssea: quanto mais destro, maior era o número de estruturas à direita que eram maiores do que à esquerda. Indivíduos canhotos, por outro lado, não espelham simplesmente estes achados para a esquerda, mas possuem as propriedades à direita menos desenvolvidas. Quatro ou mais estruturas maiores à direita eram, de modo geral, indicativas para um indivíduo destro. De forma geral, os resultados corroboram com a hipótese de uma ligação tensional entre o membro superior e o crânio.

A consequência desses achados para nossa compreensão do ombro é valiosa: nota-se que, ao longo da evolução para a bipedia, trapézio e ECM alteraram suas funções conforme a ação da gravidade agia sobre um corpo em modificação. Ao invés da função de mover e suspender a cabeça anteriorizada através da inserção na linha nucal, agora suspendiam o ombro através da cabeça, deixando o ligamento nucal (ou “placa” nucal, como sugere a autora) sob bem menos tensão. A inversão entre ponto fixo e ponto móvel e a alteração da ação tensional reflete-se na modelagem óssea.

Como em tantos outros casos, também neste quesito a ontogenia imita a filogenia. No desenvolvimento infantil, posições quadrúpedes dão espaço, sucessivamente, à liberação dos membros superiores e ao desenvolvimento da capacidade bípede e da postura ereta em ortostatismo. As estruturas ósseas às quais se refere o artigo acompanham este movimento: mastoide e clavícula vão adquirindo sua forma ao longo da aquisição da bipedia na criança.

Utilizando-se, adicionalmente, de um diagrama de corpo livre de análise de forças em 3D, a autora confirma que a postura ereta e bípede implica no relaxamento do Lig. nucal e na suspensão do ombro através do trapézio e ECM, sendo que a maior força não-reativa deste sistema concentra-se no processo mastoide. Com isso, a presença de um processo mastoide desenvolvido e de uma clavícula comprida em humanos faria sentido – funcionando como “âncoras” para o membro superior suspenso.

Os achados de Michelle Osborn formulam uma hipótese intrigante: de que, ao mesmo tempo em que desenvolvemos a bipedia ao longo de nossa história, trapézio e ECM tornaram-se estruturas cruciais para suspender nossa cintura escapular, fazendo com que os membros superiores estivessem livres para a manipulação. O “aparelho suspensor do ombro”, como ela denomina este complexo miofascial, nos desafia a questionar a compreensão de que a cintura escapular humana “repousa”, pesada, sobre o tórax, e de que tais músculos possuem somente a função de movimento. Muito pelo contrário, tal hipótese chama a atenção para a função suspensora, indicando que a suspensão, isométrica e/ou elástica (como no embalo dos braços durante o movimento de caminhada) seria um fator importante para a manutenção da saúde destas estruturas.

Embora estudos de anatomia comparativa não forneçam substrato para derivar interpretações clínicas diretas, eles podem estimular novas hipóteses para as ciências aplicadas. O trabalho de Michelle Osborn convida a refletir sobre a influência dos braços como pêndulos suspensos pela cabeça, sobre os vetores de força atuantes em nossa cintura escapular, a relação entre o movimento dos braços e estruturas craniocervicais, e de como o estilo de vida moderno alterou o uso dessas estruturas nos últimos séculos. Com a proliferação de cefaleias, dores cervicais e cervicobraquialgias no mundo atual, talvez valha a pena direcionar o olhar patobiomecânico para um novo ângulo, considerando também os achados mais recentes sobre a fisiologia fascial, assim gerando novas perspectivas sobre as necessidades de movimento destas estruturas.

 

Annemarie Frank é fisioterapeuta com dupla nacionalidade Homo neanderthalensis/Homo sapiens sapiens. Graduou-se em fisioterapia na terra dos Godos e possui formações em culturas como Maitland, Mulligan, Fisioterapia Esportiva e em terapia da pata dianteira. Atua em caverna própria no extremo Sul da Terra brasilis. 

 

Entre em contato com a Annemarie physiors@yahoo.com.br Gostou dos textos da Annemarie? Leia também estes: “Seu Signo É Sagital?“, “Muita Areia Pro Seu Caminhãozinho” ou  “De onde viemos e para onde estamos sentando?” ????

 

Referências

  1. Larson SG. 2015. Humeral torsion and throwing proficiency in early human evolution. J Hum Evol 85:198-205.
  2. Roach NT, Richmond BG.2015. Clavicle length, throwing performance and the reconstruction of the Homo erectus shoulder. J Hum Evol 80:107-13.
  3. Young NM, Capellini TD, Roach NT, Alemseged Z. 2015. Fossil hominin shoulders support an African ape-like last common ancestor of humans and chimpanzees. Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America. 112(38):11829-11834.
  4. Osborn ML, Homberger DG. 2015. The Human Shoulder Suspension Apparatus: A Causal Explanation for Bilateral Asymmetry and a Fresh Look at the Evolution of Human Bipedality. Anat Rec (Hoboken) 298(9):1572-88.
  5. Osborn M. 2013. The shoulder suspension of bipedal humans and the head suspension of quadrupetal cats: a reconstruction of macroevolutionary changes of complex systems based on natural experiments, comparative anatomy, and biomechanical analyses of extant organisms. Dissertação, Louisiana State University.

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